Início home Sobre home Pesquisas home índice home Colaboradores home Eventos home Buscar
s Fundamentos   Teses
»  Design Industrial e Diversidade Cultural
 
“... o povo brasileiro tem o hábito de não reclamar, de não ser tão exigente. Já o europeu é mais exigente, e o americano, principalmente, qualquer coisa, processa...”, afirma o Entrevistado “E” (1998). E a influência destes povos tem contribuído para que os brasileiros se conscientizem mais acerca da questão de segurança.

A durabilidade dos produtos também varia entre os mercados. O Entrevistado “L” (1998) relata que produtos de marcas como a Bauknecht (marca de topo da Whirlpool na Europa), Siemens, Mielle, dentre outras européias, “custam caro uma barbaridade, mas têm garantia de vários anos. Duram quinze sem dar problemas, e tem gente que tem o produto há cinqüenta anos...”.

Em mercados como da Suécia, por exemplo, percebe-se uma maior atenção com relação a pessoas idosas e deficientes físicos. Isto tem se refletido no desenvolvimento de produtos mais “fáceis de manipular, de visualizar...”, como observa o Entrevistado “F” (1998). Um exemplo é o combinado freezer/refrigerador Electrolux Sensa Hand1▼ , dentre outros produtos, cujos puxadores foram desenvolvidos com uma ergonomia adequada ao uso por esse tipo de pessoas (ver Figura 532).
Figura 532 - combinado refrigerador/freezer ELECTROLUX “sensa hand” e detalhe de puxador de refrigeradores e freezers verticais electrolux (suécia, 1998)
Existem produtos tipicamente utilizados por determinados mercados. Um exemplo é o liquidificador, que, segundo a Entrevistada “A” (1998), “quase só vende no Brasil”. Enquanto a maioria dos outros mercados “compra mixer e outras coisas”, “as brasileiras gostam de bater tudo no liquidificador; até massa de bolo!”.

As pesquisas realizadas sobre o uso dos eletrodomésticos salientam a necessidade de uma maior atenção, por parte dos designers, em relação às características, necessidades e anseios particulares das pessoas de culturas diversas, no desenvolvimento de produtos.
    De vez em quando a gente faz, na área de design, estudos do comportamento da dona de casa comum. Uma pessoa nossa vai e entra na casa e pede para fotografar a geladeira, de porta aberta. E fotografa também alguns detalhes da casa, da cozinha, da lavanderia, e depois a gente analisa. E a gente vê que o que está dentro da geladeira da pessoa da Bahia é totalmente diferente do que a da pessoa de Manaus, de Belém... Em Belém, Manaus, naquela região, as pessoas comem muitas coisas da Amazônia; aqueles produtos que só existem lá. [...] têm sabores diferentes, são preparados de forma diferente. O açaí é um exemplo. O paraense comum é muito mais forte. Ele não vive sem o açaí. Ele usa aquilo para fazer suco, doce, o molho da carne... Ele usa tanto para o doce, quanto para o salgado. [...] Lá, quando se abre a geladeira, e os produtos são todos diferentes. É claro que sempre vai ter um ou outro produto que vai ser nacional, mas a base da alimentação é bem diferente. Então, será que nós não deveríamos fazer um fogão, uma geladeira, específicos para esse povo, que se identifique mais com os seus hábitos? Eu acredito que sim. (GAMA JÚNIOR, 2001).
      Escutar trecho em áudio:
O reconhecimento da qualidade do trabalho dos designers brasileiros tem levado as corporações a delegarem aos mesmos o desenvolvimento de determinados produtos para outros mercados, além do brasileiro. A Whirpool/América Latina, por exemplo, além de ser responsável pelo desenvolvimento de produtos para a América Latina, tem desenvolvido alguns para a Índia, China, Europa, e, inclusive, para os Estados Unidos, onde se encontra sediada a matriz da Whirlpool, que possui seu próprio centro de design.

A Entrevistada “M”, Designer de ergonomia e usabilidade da Whirpool/América Latina, relata a experiência de desenvolvimento, pela Whirpool/América Latina, de um refrigerador para a Índia, com a participação de designers e outros profissionais brasileiros, e mais três indianos, das áreas de Engenharia e Marketing.
    Esse refrigerador que foi desenvolvido para a Índia, por exemplo, só é comercializado lá. Não tem mercado para cá, apesar de muitas pessoas terem-no achado interessante. Ele é todo focado nos hábitos alimentares de lá. Eles não consomem carne. O que vai lá dentro, no mínimo em 50%, é água. Eles quase não colocam nenhum tipo de carne. Frutas e água é praticamente o que vai lá dentro. Então, eles precisam de mais espaço para colocar garrafas. A prateleira que temos aqui é a mesma, só que aqui nós temos uma prateleira para água, e lá eles têm duas. É um produto global, porque é feito com a mesma plataforma, só que lá tem que se ter, por exemplo, chave na porta, para que os macacos não roubem alimentos, enquanto que aqui não é preciso ter. Lá se tem o costume de utilizar pezinhos altos nos refrigeradores, para facilitar a limpeza do chão. Aqui o refrigerador não tem pé. Então, são necessárias adaptações, porque senão não vende. Se fizermos um único produto, que mais ou menos atenda um pouquinho aqui e lá, não vai agradar nem um, nem outro, porque eles não vão ter a sua identidade no produto (Entrevistada “M”, 2001). (ver Figura 537)

    [...] o consumidor indiano tem, pela sua própria formação e forma de pensar, valores completamente diferentes de um ocidental. Evidentemente, na segmentação social indiana têm-se aqueles que são extremamente ocidentalizados e aqueles que são absolutamente nativos e ligados às origens e seus ancestrais e valores completamente diversos. O desafio que a gente tinha lá era o de desenvolver um produto especificamente para o público indiano. Então, esse produto tinha como característica, primeiro, ser um produto de pequeno porte, porque as casas são pequenas. O produto tem que ser barato, porque o poder aquisitivo indiano da grande maioria é baixo. São produtos compactos. Internamente, tinha que ter muito espaço para água gelada, porque eles consomem grandes quantidades de água gelada, e é um sinal de hospitalidade quando chega alguém na casa, um vizinho ou um amigo, ou um visitante, oferecer-lhe água gelada. Para eles isso é muito importante. Então, o espaço para vasilhas e garrafas de água tem que ser bastante grande, assim como o de frutas e verduras, que eles consomem muito. Então, o produto tem espaço para frutas e verduras muito grande, diferentemente do espaço para carne, que praticamente não existe. Ele tinha chave na porta, porque, em muitas regiões da Índia, pelo próprio respeito deles ao ambiente, eles são incapazes de matar qualquer ser vivo. Tem uma história interessante que a gente gosta de contar que, numa reunião de trabalho na ...um colega nosso olhou no chão e viu, “meu Deus, olha um escorpião”. E ele já ia se preparando para pegar um sapato e matar o escorpião, quando um indiano chegou calmamente, pegou uma folha de papel, pegou o escorpião, colocou na janela e o soltou no jardim. E alguém disse assim: “Mas, você não vai matar o escorpião”?” “Não, esse escorpião é um ser vivo; ele não merece morrer. Ele tem que estar no lugar certo, não dentro da sala, mas no lugar certo”. Então, essa história ilustra o porquê da chave na porta, porque no interior da Índia existem muitos macacos, e os macacos entram nas casas e muitas vezes abrem a geladeira. Então, a chave existe para evitar a invasão de animais, assim como todo o sistema de baixo do produto é protegido contra roedores. Então, os fios  não são aparentes, o compressor é protegido, para evitar que um roedor ou um pequeno animal entre nas engrenagens, na parte elétrica, enfim, no mecanismo do produto, danifique o produto e fira o animal. . (FIORETTI, 2006).
    Clique para ver o trecho da entrevista em vídeo
Figura 537 - detalhes de exterior e interior de um refrigerador da whirpool (india, 2001)
NOTA: Design desenvolvido pelo Centro de Design da Whirpool/América Latina, com a participação de indianos das áreas de engenharia e marketing; a prateleira superior possui uma parte removível, para o acondicionamento de vasilhas maiores com água.
Nesta experiência, “os designers que trabalharam foram diversas vezes para a Índia, para fazer pesquisa, ir à casa de consumidores, para entender mais aquele mundo, que é muito diferente”, lembra Gama Júnior (2001).

O fato de não existir, de um modo geral, uma diferenciação dos produtos para os diferentes mercados internos de cada país, como no caso do Brasil, por exemplo, “é um problema” para os designers e para a indústria, em função da “diferença cultural” que se tem entre as várias regiões, conforme salienta o Entrevistado “D” (1998).

A abordagem genérica no design de produtos tem levado a certas adaptações informais realizadas pelos próprios usuários, a fim de melhor atender suas necessidades específicas. No Nordeste do Brasil, por exemplo, o freezer horizontal tem sido utilizado de uma forma distinta, em relação ao Sul do país, onde se costuma acondicionar sorvetes, bebidas e carnes, dentre outros produtos. De acordo com o Entrevistado “D” (1998), os nordestinos “utilizam-no para resfriar coco, para fazer barra de gelo”. Assim, há situações em que enchem o freezer de água para fazer barra de gelo, e outras em que enchem-no de água de coco “e fazem um furo no gabinete do produto, para servir esse côco gelado na praia”.

Exemplos como este confirmam a visão de Certeau (1994), segundo a qual a criatividade popular consegue compor maneiras diversas de utilizar os produtos, ainda que estes sejam impostos de uma forma padronizada pela ordem econômica dominante.

Da mesma forma, compreende-se que a “produção de massa” e o “consumo de massa” de produtos não resultam, necessariamente, em uma “cultura de massa”, ou seja, na absorção passiva dos bens de consumo e na homogeneização das culturas. Conforme o entendimento de Baudrillard (1993) e Braudel (1969), dentre outros, percebe-se o caráter ativo da relação dos indivíduos com os objetos, que ganham significados particulares, no processo cultural em que se inserem.

Os requisitos de uso dos produtos fazem parte de um processo dinâmico, e a diversidade cultural precisa ser considerada com muita atenção no design industrial, a fim de se buscar atender os anseios e as necessidades fundamentais das pessoas, nos contextos plurais e no seio das transformações culturais, sociais, ambientais e econômicas, dentre outras, vivenciadas pelas mesmas na sociedade.

1▲ Este produto recebeu o Prêmio Handtaget de Design, da Rainha Silvia da Suécia, em 1998.
 página anterior PÁGINA 08 próximo capítulo  
Todos os direitos reservados - Copyright © Maristela Mitsuko Ono 2004 / 2007 / 2009.